ato I – exposição
era sábado à noite e eu estava em casa. havia escolhido, com orgulho, não sair e resolvi me retirar mais cedo do que de costume. vesti minha camiseta velha e, ao deitar, senti uma satisfação dúbia por estar ali – um prazer meio melancólico, mas ainda assim -prazer e então, decidi rezar.
a oração, para mim, é algo antinatural quando intencionada. gosto quando ela vem de surpresa, nadando num rio tranquilo antes da queda em cachoeira. apaguei a luz e comecei minha conversa com deus, agradecendo pela vida e pelos sentidos. por todos eles. e por estar, óbvio, em um sábado à noite, sã e salva.
no meio do meu papo, concentrada, entre pensamentos e pedidos, ouço um gemido de prazer que parece vir de cima.
ele me sequestra por um instante, mas, fiel ao meu presente, retomo a intenção e sigo com a prece.
outro gemido, porém, mais alto. recebo a interrupção. mais alguém entrou em cena. saio do transe e me divirto. lembro daqueles momentos clássicos em família, quando os mais velhos puxam uma oração e, entre olhares de cumplicidade e sarcasmo, a juventude se diverte com o protocolo religioso – já prevendo intuitivamente que, instantes depois, serão eles mesmos a cometer os maiores pecados à mesa. aquela famosa licença para pecar.
com o sorriso ainda na boca, como quem é pega no flagra enfiando o dedo no bolo, peço desculpas pelo monólogo interrompido. mas, sem opção, aproveito a deixa e já agradeço pela bênção recebida, aceitando a glória – esse chamado que veio de cima – com enorme satisfação. rendo-me a eles em coro e, como no teatro físico de lecoq, meu corpo cede ao impulso do grupo; a entrega não acontece por escolha racional, mas por uma organicidade irresistível. esse instante me conta que, mesmo na solidão escolhida, há momentos em que o corpo anseia por pertencimento, e o coro se torna inevitável.
nessa madrugada de inverno, no meu quarto, soube, com a certeza de quem ora no escuro, que deus realmente dá o frio conforme o cobertor.
ato II – desenvolvimento
uma amiga acende um cigarro e declara, como quem ainda degusta o prazer:
“eu vou fumar porque acabei de transar com ele.”
ele, no caso, era lenny kravitz.
naquele momento, ela soube traduzir exatamente o que eu sentia. eu também havia acabado de gozar com ele.
mas, ao contrário dela, não tinha um cigarro para selar o êxtase. desde que parei de fumar, perdi esse ritual de descarga, de fechamento, de diluição do prazer em neblina. então, precisei ficar ali, com o tesão intacto, pulsando dentro de mim. sem válvula de escape. apenas a sensação vibrando por toda a minha existência. sim, existência -porque ali eu era mil mulheres também.
em nenhum momento tirei a roupa de lenny, menos ainda me imaginei sentada nele. eu apenas conectei, estive presente – atenta às suas investidas metafóricas, às suas insinuações performáticas, à forma como seu corpo, sua voz e sua guitarra condensavam o erotismo mais potente que já presenciei.
nesse show, entendi o que moldou meu senso ético estético erótico. percebi o quão carente estamos de referências robustas, inteligentes e rock and roll. enquanto ele dançava, tocava, encantava – imenso, latejante, fluido – eu me vi completamente hipnotizada, suspirando perplecta, ao ponto de uma desconhecida me perguntar:
“miga, cê tá bem?”
sem conseguir palavrar, apenas a olhei e sorri, aliviada. depois do sim, ela passou a dividir seus olhares entre mim e ele, como uma voyer num jogo de tênis feroz, testemunhando aquele momento sagrado e profano – no sentido mais dionisíaco da expressão.
através dele e desse gatilho da arte em seu estado mais urgente, eu me reconectei com minha libido mais profunda – aquela que, por algum tempo, esteve latente.
e então, no dia seguinte, ainda sem saber meu nome relembrando a noite anterior, minha amiga me manda uma matéria:
lenny kravitz está em celibato há nove anos.
ao descobrir que ele não tem se deixado dominar pelos próprios desejos, acendi um cigarro imaginário e senti uma conexão ainda mais visceral – reforçando, a mais erótica que já experimentei: do espírito.
I belong to you Lenny!
ato III – resolução/revolução ou clímax
“Quando você puder sentar-se com o desejo não resolvido em seu corpo e suportar sua ânsia de ser satisfeito sem satisfazê-la, terá descoberto uma ferramenta de vida que pode ser usada em todos os aspectos.”*
o ato de me contrariar que me trouxe até aqui. não “fumar” a experiência – ou seja, não criar minha própria cortina de fumaça – me fez consentir e elaborar as vivências que contei acima. vivências que, caso eu tivesse recorrido a algum artifício para me tirar da presença, poderiam ter perdido completamente o erotismo, se tornando vulgares ou passando batidas.
esse sentido erótico, sentido como sentido, como força criadora, é quase inexprimível, porque se dá no campo da percepção – na sintonia fina e apurada consigo mesma. não nasce necessariamente do contato físico nem do desejo pelo outro como objeto, mas do arrebatamento – do que vibra no intermezzo, no subtexto, na suspensão.
é uma empolgação genuína, quase infantil, que desafia o adulto castrado, aquele que quer apressar o fim porque esqueceu como é gostoso brincar.
é preciso coragem para viver essa comunicação radical, que vai além da linguagem.
e, para dar aquele empurrãozinho no escorregador ou no balanço, (pode escolher) encerro com um pensamento de Audre Lorde, em Irmã Outsider:
“O erótico é uma dimensão entre as origens da nossa autoconsciência e o caos dos nossos sentimentos mais intensos. É um sentimento íntimo de satisfação e, uma vez que o experimentamos, sabemos que é possível almejá-lo. Uma vez que experimentamos a plenitude dessa profundidade de sentimento e reconhecemos o seu poder, em nome de nossa honra e de nosso respeito próprio, esse é o mínimo que podemos exigir de nós mesmos.”
e aí, qual é o mínimo que você tem exigido de você?
aloha! 🌺
para quem prefere a escuta, a versão narrada desta newsletter está disponível abaixo
referências: incluí alguns links (em azul) de artes que me conectam com esse texto. aproveite!
*acredito que esta fala seja de paramahansa yogananda; um de meus gurus e sobre quem ainda quero falar aqui. ela estava anotada em um de meus cadernos sem crédito.
eu não estava preparada para tanta cremosidade
Perfeito! Ameiii!😉🥰